segunda-feira, 29 de junho de 2009

Colapso

(enfiada num monte de almofadas. Olhos inchados, fechados. A cabeça enterrada entre as mãos. Se não aconteceu nada, sobre qual coisa se vai conversar?)
- É uma noite sem lua e sem estrela. Sabe um vale que se forma no vão entre duas paredes de pedra? Mas nem perde seu tempo. Olha pra cima: não tem fim. Não sonha em escalar, em voar.
- O que tinha lá em cima?
- Luz. Gente bem vestida, vozes. Música. Calor. Luz, luz em todos os lugares. Está tudo bem feito, colorido, e as pessoas não páram de falar umas com as outras. Sorrindo, sempre. Está tudo bem.
- E por que você desceu?
- (...) Era mentira.
- E aqui embaixo, é verdade?
- Também não sei. Mas olha.
- O quê?
- Minhas pernas e braços cortados. Esse sangue, é de verdade. Estou tentando andar. (chora) Só que eu não sei onde é "a frente", e só tem pedras irregulares. Mais caio do que ando. Vou indo cada vez mais devagar porque não enxergo nada.
- E o que tem aqui?
- Pedras irregulares, pedras irregulares e pedras irregulares. Eu tropeço nelas, eu as chuto, eu ando descalça sobre elas, eu dou de cara com paredes delas.
- Elas, sim, são de verdade.
- O meu sangue está nelas, não está?
- Vamos andando?
- Já estou indo. (chora) Não reclama.
- Quer encontrar uma lanterna?
- NEM FERRANDO!
- Não é melhor ver onde está pisando?
- Não, obrigada. Quero continuar só com a mínima noção dessa paisagem horrorosa.
- Então, que você quer encontrar?
- Qualquer coisa diferente disso tudo.
- Como o quê?
- (...) Alguma coisa colorida?...
- Como o quê?
- Não importa. Se eu ficar fascinada com alguma coisa, já tenho combustível pra andar mais um pouquinho.
- Vamos andando.
- (...)
- Achou alguma coisa?
- Pisei numa coisa macia. É uma pele. Tipo uma estola.
- Vai usar isso pra proteger qual parte do seu corpo?
- Dou a mínima pra proteção do meu corpo, agora. Estou fascinada.
- Fascinada pelo quê?
- Pelo fato de que alguém já esteve aqui. (...) É um animal pequeno. Era. Morreu faz tempo. Não tem nem cheiro, mais.
- Então pode ter mais vida, aqui.
- (chora) Morreu faz tempo.
- Vamos andando?
- (limpa as lágrimas) Bora.
- Encontrou mais alguma coisa?
- Espera, droga. Estou me cortando inteira. (grunhe. Vai chorar de novo). Queria um sapato.
- Uma referência.
- Não, um sapato.
- Pro psiquismo, "sapato" significa "referência".
- (...) Eu quero parar de me cortar!
- Mas pra parar de se cortar, tem que parar de andar.
- (...) Posso deitar aqui?
- Não. Vamos andando mais um pouco.
- Merda. (chora)
- Encontrou alguma coisa?
- (chora)
- Vamos andando. Devagar.
- (pára.) Olha.
- Que foi?
- Uma árvore seca. Uma blusa, ou camisa, presa no galho. Coisa de filme. Uma pista.
- Hum, mais alguém esteve aqui.
- Faz tempo. Agora acho que só tem eu.
- Eu também estou aqui.
- E isso não adianta nada. Você também não sabe onde é "a frente" e não me garante que alguma coisa vá ser diferente dessas pedras.
- Dessa vida sem sentimento.
- Dessas pedras.
- Pro psiquismo, 'pedra' representa 'ausência de sentimento'. Vamos andando.
- (chora)
- O que foi?
- Eu quero deitar um pouco. Posso continuar amanhã?
- Pode.
- (chora) Eu tenho medo!
- De alguma ameaça enquanto você dorme?
- Se alguém me destroçasse enquanto durmo, não sabe o favor que me faria. Eu tenho medo é de amanhã querer deitar de novo, até depois de amanhã.
- O que é mais difícil, ao caminhar?
- Falta de perspectiva. Falta de garantia. Falta de certeza de que exista algo diferente disso aqui (aponta à volta).
- Se ficar aí, temos certeza de que não vai existir, mesmo. Se você continuar andando, tem chance de que exista.
- Mas não tenho garantia.
- Não temos.
- (chora).
- E onde você vai deitar, se é tudo cortante?
- Tateei um canto, tirei os pedregulhos. Eu caibo aqui. (se encolhe).
- Tira uma foto desse momento exato. Vamos retomar deste ponto, depois que você descansar.

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- (...) mas tem uma menina, enfiada num poço, gritando o tempo inteiro. Eu sustento essa cara de parte integrante da sociedade, e faço sucesso. Mas ela já perdeu as unhas nas paredes. Ela, as roupas dela e a boca, têm a mesma palidez.
- Paredes de pedra?
- É.
- Iguais às do abismo.
- Sim.
- Posso falar com ela?
- Se conseguir fazê-la parar de gritar, vá em frente. (fecha os olhos)
- Oi.
- (...)
- O que foi?
- Ela não fala. Quase morreu de susto com você.
- Mas parou de gritar.
- Parou tudo. Até o coração.
- Estou jogando uma corda pra ela.
- (...)
- E então?
- Ela não quer subir.
- Por que não?
- Porque a vida dela é essa.
- Do que ela precisa?
- De tudo que ela tinha. Calor. Perspectiva. Esperança. Segurança.
- E por que ela não sobe? Podemos oferecer isto pra ela, cá em cima.
- Desculpa, mas ela está gargalhando neste momento.
- Desce e vai buscá-la.
- (...)
- Chegou?
- (chora) Ela me agrediu. (chora mais ainda) Como eu posso ajudar alguém que quer ficar como está?
- Ela te deu veneno?
- Ela me bateu! Parece que a ameaça, sou eu!
- Ela sente, você pensa. Ela não quer ficar como está. Só que ela não acredita que possa ser diferente.
- Por que ela desceu, maldita? (limpando o sangue, encarando um bicho)
- Talvez porque aqui em cima fosse tudo mentira, pra ela.
- (...)
- E então? Como está?
- Ela se desarmou. Eu vou levá-la pra cima.
- E o que você pode oferecer pra ela?
- (...) (...) (...) companhia.
- E o que mais?
- Mais nada. Eu mesma não tenho mais do que isso. As garantias, a esperança, a segurança e o escambau de que ela precisa, eu também não tenho. Vamos achar por aí.
- Se andarem por aí, vão achar.
- Ou não.
- Ou não. Mas se não andarem, com certeza não vão achar nada. Se andarem, ainda têm chance.
- Ela desaprendeu o português, de tanto não falar. E não pára de olhar tudo. E eu vou olhando pra frente, praticamente arrastando-na.
- Pelas mãos, pelos cabelos?...
- Não. Ela está agarrada em mim. Descabelada, sangrando, roupas velhas e rasgadas. Muda e descrente.
- Desconfiada.
- De tudo. Ela é pior do que eu.
- Ela é você.
- Não. 'Eu' estou indo em frente.
- Não. 'Você' está deitada nas pedras. Você está num vale, ou num poço ermo e solitário gritando, e não quer mais nem tentar se explicar. Só se expressa. Só grita, arranca as unhas e a pele nos seus próprios sentimentos amortecidos. Vamos agora andar agarrada à sua parte consciente - essa que se desenvolveu forçosamente nesses últimos anos. Você irá um pouco mais em frente, amanhã. E um pouco mais em frente,
depois de amanhã. Até encontrar alguma coisa colorida.
- (...) Onde é "em frente"?
- Onde você determinar.
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(...)

quinta-feira, 25 de junho de 2009

"Eyes without a face"

Voltando da prova do vestibular (sem comentários, nem pra esta manhã, nem pra noite que a antecedeu), escutei pela infinitésima vez esta música do Billy Idol.

Ostra que sou, pela primeira prestei atenção ao nome dela, quando o locutor teve a presteza de informar.


Todos já pensamos em rosto sem olhos,
mas em "olhos sem rosto"?


Deve ser encantador e desgastante conviver com Billy Idol.

Encantador, assim como é conviver com algumas poucas pessoas que pensam fora do quadrado.

Desgastante, porque se você não viver também caminhando fora dele,
logo vai se tornar só mais um desinteressante.

... e Billy vai te deixar.

(...)

terça-feira, 9 de junho de 2009

Super-Herói

Minha mãe não tem música. Não tem poesia, não tem um verso sequer.

Quando ouço Celine Dion, Because you loved me, ligo pra ela de onde estiver, pra que ouça comigo.

Quando leio sobre definições de amor utópico, copio e colo num email, e mando pra ela. Não sou muito de melar. Escrever longas cartas, fazer declarações... é meu jeito. Eu gosto, é de Verdade. Romantismo me deixa nervosa. Parece maquiagem.

Perguntei ao meu amigo Cassio o que é que se dá de presente a um Super-Herói; a alguém que tenha interferido em 'tal' momento da nossa vida, de 'tal' forma que, depois daquilo, ninguém a nossa volta possa negar: "não tivesse sido aquele herói, não haveria mais história pra viver. Só pra contar."

Ele sugeriu: um presente eterno.

Na ocasião do 54o. aniver da mulher da minha vida, como ela não é de ferro, ganhou também umas bobagenzinhas para uso pessoal.

Mas como até Jóias, se pode perder por aí...

o presente eterno que dei à minha maior Inspiração, foi dor.

Dessa vez, dor só em mim,
pra que Ela seja lembrada ainda mais vezes,
por ainda mais gente.

Por mais de 1350 dias de abraço ininterrupto, na noite mais escura de nossas vidas e perplexidade diante de questionamentos obtusos ("como é que se anda em linha reta?"), não preciso conhecer de tudo pra jurar por Deus que

minha mãe não tem música. Não tem poesia...


não existe um verso sequer que a mereça.


domingo, 7 de junho de 2009

Prazer; sou Dona Placa

Estava eu, nada bela num final de tarde de sexta-feira depois de duas horas e meia de trânsito, e nada faceira (= presa no trânsito.)

No túnel Ayrton Senna, os carros desligavam os motores, evitando o suicídio coletivo a que estávamos prestes. Minha alegria: uma placa, simples, pendurada na parte superior. Uma seta simples, que indicava "adiante", com os dizeres:
_______________________
(seta) Juscelino Kubitschek
----------------------------------------

Mas, me diga você.

O que faríamos todos
se na placa estivesse escrito:

___________________
(seta) Puta que o pariu
----------------------------------

???


"Ah, não. 'Pqp', não. Engatar ré. Ativar asas."

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É, Dona Placa que vá fazer Terapia, mas ela sobrou. De fato, sobrou.

Se você fosse o Analista de Dona Placa, o que sugeriria?

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Pense num caminho escuso que liga Mairiporã de volta à Fernão Dias, depois de se ter entrado por uma vicinal sinistra. A cada 15km, surge uma placa ao longe. Beem ao longe!... você quase quer chorar, até se aproximar o bastante pra conseguir ler:

________________
"Estância Coração
---------------------------

Quando, sabe Deus ou o Destino "como", lê-se 'Fernão Dias - sentido São Paulo' nalguma delas, você obedece loucamente. Nada mais importa. O celular toca. No visor: "Homem da sua vida".

Agora você vai esperar, meu filho.

E eis que a hora chega. Sempre chega, o tal momento em que você pode optar pela esquerda, pela direita ou por meter o carro no muro à frente. Não havendo novas regras, a gente segue as antigas.

Mas dependendo da última orientação que recebeu, e seguindo adiante, o tio do seguro não vai entender que você é um Caxias maldito que se impediu de fazer uma escolha de vida por sua conta e risco.

Então você opta, claro, pela que não é.

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Por que Dona Placa não procura um lugar onde ela vá ter valor?

(...)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Agosto de 2005

*** Tem acontecido muito, ultimamente. Acordo com a boca aberta, e a famosa ‘baba’ me falta, tanto no travesseiro, quanto dentro da própria boca. Calculo que passei bom tempo fazendo respiração bucal, ao concentrar-me nos pontos onde deveria haver glândulas salivares ativas. Conclusão imediata: em todos, elas parecem ter se atrofiado. Toco minha própria língua com os dedos, e sinto a pressão nos dedos, somente. ***

Certa madrugada, cheguei a levantar pra buscar um copo d’água, a fim de aliviar a sensação de morte da carne dela. Insensível. E uma língua insensível é como todo um corpo morto: inútil.A água escorregou para a garganta como se passasse por uma pista de plástico. Desesperei. “Nunca mais vou sentir gosto. Temperatura. Pressão”. Havia agora uma bola de tênis aveludada dentro da minha única boca. Expus o músculo intra-bucal, e estapeei. Alonguei, empurrei, torci, umedeci outra vez.

Ele nem se abalou.

Alguma das glândulas apresentou-se, e a ptialina voltou, devagar, a permear minhas bochechas, meus dentes... e, por fim, a bendita língua, atleta passiva da questão. Dentro de minutos eternos, eu voltei a sentir a superfície dela, tendo aprendido que ela pode, de fato, não ser nada frágil...

desde que eu a mantenha protegida no abrigo onde a natureza a colocou.


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Aconteceu muitas vezes, e não só ‘ultimamente’. Adormeci e acordei com o coração sobre meu próprio peito; poucas vezes, batendo; nas demais, se debatendo. Qualquer brisa o fazia tiritar de frio. Um raio de sol que ainda ameaçava amanhecer, já o queimava todo. Que dirá, os dias de rígido inverno, e as horas de sol a pino, em pleno dezembro!...

Ele nunca se contentou em saber o que viam os olhos e ouviam os ouvidos – estes, sim, criados pra funcionar plenamente aqui fora. Não acreditou, e quis ver; quis ele mesmo ouvir, e pagou pra saber até que ponto poderia sentir, duvidando que “tardes demais’ existissem...

e sem previamente consultar um Meteorologista.

Tarde demais, na longa noite durante a qual o choro costuma durar, busquei água a fim de aliviar a sensação de morte da carne dele. Insensível. Um coração insensível é pior que um corpo morto: obriga o corpo inútil que o comporta a se fazer de vivo.

A água fugiu para as bordas como se escorresse por uma bola de plástico. Desesperei. “Nunca mais vou sentir. Não tudo” – sentenciei. Havia agora um metrônomo metálico tinindo dentro do meu peito. Abracei minha própria caixa torácica. Nem precisava curar. Eu conhecia minhas limitações e (de)méritos. Anestesia. Entorpecentes. Bastavam.

Busquei outras fontes de calor, algo capaz de derreter aquele metal no qual o coração se envolvera pra sobreviver nessa selva aqui de fora – quem o jogou pra virar-se nela, senão ele próprio?

Alonguei, empurrei, torci, umedeci outra vez.

Ele nem se abalou.

MAS... (Como são felizes as más histórias, depois do “mas...”!)

O Tempo, além de sábio, é também misericordioso. E, embora as marcas negativas frutifiquem até o fim de seu ciclo, Ele não nega novas chances; o mesmo Tempo que nos pré-ocupa com o que o futuro há de trazer, é também o grande responsável por nos ajudar a deixar até as coisas de que nem lembramos mais, mas ainda estão ali, impermeabilizando e reabrindo uma velha ferida; enquanto dormimos, enquanto sonhamos acordados.

E o Tempo, além de sábio e misericordioso, é o Pai da Criatividade.


(o final desse texto, só pra quem viveu.
O próximo final, quem sabe?)

(...)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Divã

Durante o dia inteiro, meu celular deu-se a graça de tocar duas vezes.

No cinema, tocou três.

É só comigo?...

("a lei de smurf me pegou de jeito!" - Marco Luke)

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Gostei de "Divã". Um amigo havia dito que assistiu três vezes, e não quis me explicar o porquê.
Mas um festival de sorrisos de Gianecchini explica tudo, meu bem. De onde viemos, para onde vamos...

Eu gostei. Não adorei. Muito menos, amei. Gostei. Um mar de chavões e pieguices que é bom encarar no escuro, de vez em quando, pra humanizar algumas partes.

"... e, se eu tive problemas, por falta de felicidade é que não foi."

(...)